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Entre o Torque e a Serenidade

Publicada em: 02/01/2025 08:27 - IGREJA

“Lindo de se ver!” “Satisfatório!” “Ter dinheiro deve ser bom demais!” Esses foram alguns dos comentários que dominaram as redes sociais após a circulação de um vídeo, no mínimo, inusitado: um SUV empurrando uma caminhonete; esta, estacionada em frente ao portão de uma garagem, bloqueava a saída do veículo “empurrador”. Para além da surpresa com a cena, muitos internautas destacaram a impressionante capacidade do SUV – o que, diga-se de passagem, deve alavancar sua fama e impulsionar suas vendas.

Para um observador social – sobretudo se este for um cristão – há considerações a serem feitas sobre o episódio. A primeira, que me parece a mais evidente, é o fato de as pessoas estarem perdendo – ou já terem perdido de vez – a tolerância para com determinados erros. Convenhamos: estacionar um carro em frente a uma garagem é uma evidente infração, passível de multa e guincho. A segunda observação é justamente esta: a “vítima” (no caso, o proprietário do veículo impedido de sair de sua garagemnão buscou os meios legais; antes, “resolveu” o problema de modo, digamos assim, desburocratizado. Com seus muitos cavalos de força sob o controle das mãos e pés, eliminou a obstrução. Assumiu para si o poder que, em uma sociedade como a nossa, deveria ser – e, em tese, é – delegado ao Estado, o árbitro legitimado e autoproclamado mitigador de justiceiros sociais.

Não sejamos hipócritas: muitas vezes desejamos fazer o mesmo. Exaustos com tantos abusos, tantos empecilhos obstruindo nosso caminho – literal ou metaforicamente – temos vontade de usar os recursos que temos à mão para pôr um fim imediato ao problema. Ainda mais quando esse problema é causado pelos outros. “O inferno são os outros”, escreveu Sartre. O outro é visto como um empecilho, um obstáculo, um estorvo. O outro quer nos prejudicar. O outro, errante e obtuso, precisa ser corrigido, precisa ver que não é assim que se age! Talvez mereça um tratamento de choque, uma ação memorável – pedagógica, até – para pensar duas vezes antes de repetir a afronta.

Respiremos, pois. Contemos até dez. Tenhamos calma. Afinal de contas, poucos de nós temos a potência de um SUV que custa algumas centenas de milhares de reais… Ops! Tentemos novamente. Não foi para isso que Cristo nos chamou. Quando tivermos a oportunidade e até o poder de fazer justiça com nossas mãos, devemos… devemos o quê? Pensar como Cristo. Às vezes, o que nos impede de dar fim a um problema imediato é simplesmente a falta de poder, e não a falta de vontade. Com poder suficiente, o que faríamos ao sermos obstruídos em nossos objetivos? Como consideraríamos as pessoas que julgamos atrapalhar o bom andamento de nosso planejamento? Davi, rei, dispôs do poder de resolver, por meio da morte de Urias, o inconveniente – e escandaloso – problema do adultério com Bate-Seba. O Sinédrio dispôs do poder de, ao entregar Jesus a Pilatos, “resolver” o incômodo que um carismático.

pregador de Nazaré representava a seus projetos políticos. Olhamos para esses homens e pensamos quão cruéis ou insanos eles podiam ser, mas será que a diferença de natureza entre nós e eles é tão grande assim? E se nós tivéssemos o poder de “solucionar” problemas à nossa maneira?

Quando olhamos para a Bíblia, especialmente para o exemplo de Jesus e dos primeiros cristãos, percebemos que “solucionar problemas” às custas da desconsideração do outro não faz parte dos mandamentos do Reino. Pelo contrário: não prejudicar o outro – ainda que ele esteja errado, e mesmo que sejamos as vítimas – é a prescrição do Evangelho. Jesus disse que, se pedisse ao Pai, este enviaria uma legião de anjos para livrá-lo da prisão e do sofrimento da cruz (Mateus 26:53), mas escolheu não o fazer. Quando os discípulos Tiago e João quiseram orar para que caísse fogo do céu sobre uma aldeia samaritana que não os recebeu (Lucas 9:54), Jesus os repreendeu, afirmando que eles não sabiam de que espírito eram, pois o Filho do Homem veio para salvar, e não para destruir. Além disso, Jesus, sendo Deus, não usou o poder que possuía em causa própria para aniquilar seus “inimigos”, conforme lemos em Filipenses 2:6-8. Pelo contrário, esvaziou-se, assumindo a forma de servo e sendo obediente até a morte, e morte de cruz.

Tenho para mim que, justamente, a humildade, no sentido de não se ter poder, é algo pedagógico. O caminho de Cristo não oferece atalhos ou soluções rápidas que passem por cima da humanidade alheia. Convida-nos, antes, a enxergar o outro, por mais inconveniente que seja, como alguém digno de respeito, de graça e de paciência. Não se trata de ignorar o erro ou fechar os olhos diante da injustiça, mas de recusar o impulso que desembainha a espada – ou engata a marcha à ré! Em um mundo saturado de respostas imediatas e “soluções” incisivas e diminuidoras do outro, somos chamados a mostrar um caminho muito distinto: o da misericórdia, o da disposição em renunciar à imposição de nossos motivos como remédio para o mal. É nesse testemunho que revelamos ao mundo a verdadeira força do Reino – a força que se manifesta não no poder de empurrar, mas no poder de abraçar.

Por: Gustavo Lopes de Oliveira Santos

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